O Gosto pela Missão – para que somos enviados?

PARA QUE SOMOS ENVIADOS: PROMOÇÃO DOS VALORES DO REINO DE DEUS
1 – Isso não é o Reino
A encíclica Redemptoris Missio (RM) nos introduz em um dos objetivos da missão ad gentes, que é a promoção dos valores do Reino de Deus e de Cristo. Depois de uma minuciosa explicação sobre a realidade do Reino de Deus, ela toma em consideração as posições atuais que intencionalmente acentuam o Reino de modo a serem chamadas de “reinocêntricas”, mas que deixam muito de lado as outras duas realidades fundamentais de Cristo e da Igreja.
“Agora – disse o Papa João Paulo II – não é este o Reino de Deus que conhecemos pela Revelação, o qual não pode ser separado nem de Cristo nem da Igreja. Cristo não só anunciou o Reino, mas também que nele o Reino mesmo se fez presente e que chegou para ser cumprido. […] Desse modo, o Reino não pode ser separado da Igreja. Certamente esta não é o fim em si mesma, já que está orientada para o Reino de Deus, do qual é gérmen, sinal e instrumento. De fato, ela se distingue de Cristo e do Reino e está unida indissoluvelmente a ambos. Cristo dotou a Igreja, seu corpo, com a plenitude dos bens e meios da salvação; o Espírito Santo mora nela, a vivifica com seus dons e carismas, a santifica, a guia e a renova sem cessar.” (RM, 18)
As observações de João Paulo II na encíclica podem ser sintetizadas dizendo que não se pode deixar de atuar neste objetivo separando-o dos outros dois, que são a primeira evangelização e a edificação da Igreja local. É este o problema na atual missiologia que considera mais cômodo falar do Reino que falar de Cristo e da Igreja, e fazer uma ação decidida pelo progresso do mundo, mas deixando à margem tanto o anúncio quanto a edificação da Igreja local.
João Paulo II resume da seguinte forma:
“Certamente o Reino exige a promoção dos bens humanos e dos valores que bem podem se chamar de ‘evangélicos’, porque estão intimamente ligados à Boa Nova. Mas esta promoção, que a Igreja sente também muito dentro de si, não deve separar-se nem contrapor-se aos outros compromissos fundamentais que são o anúncio de Cristo e de seu Evangelho, a fundação e o desenvolvimento de comunidades que concretizam entre as pessoas a imagem viva do Reino. Com isto, não há porque temer cair numa forma de ‘eclesiocentrismo’.” (RM, 19)
2 – Isto sim é o Reino
Certa pessoa não-hebréia perguntou ao rabino Josué: “Vocês têm dias festivos e nós não temos dias festivos. Quando vocês se alegram nós não nos alegramos; e quando nós nos alegramos vocês não se alegram. Mas então quando poderemos nos alegrar juntos?”. O rabino Josué respondeu: “Quando a chuva cair”.
Para encontrar o momento de contato, de união, de mútua alegria, é necessário superar as visões estreitas nas quais podemos cair devido às nossas crenças, ritos e costumes. Estes elementos específicos podem nos fazer sentir tão diferentes aos demais que não veremos uma base comum na qual podemos nos alegrar juntos. Em troca, esta base nasce. Quando cai a chuva a terra se alegra, a natureza se veste de verde, a vida humana encontra um recurso básico. Chuva é vida, vida é crescimento, crescimento é chegar a ser humano. Ser humano é fraternidade, fraternidade é justiça, justiça é uma forma de amar que a história nos pede hoje para chegarmos a um mundo novo. Um mundo novo pode ser uma maneira de chamar o Reino de Deus.
Mas os revolucionários de todos os tempos anunciaram que criariam um mundo novo como fruto de seus esforços. O mundo novo que se chama de Reino não nasce simplesmente de baixo como uma flor silvestre, mas requer uma chuva que vem do alto e que faz possível a germinação dos valores do Reino no mundo: “Da mesma forma como a chuva e a neve, que caem do céu e para lá não voltam sem antes molhar a terra, tornando-a fecunda e fazendo-a germinar, a fim de produzir semente para o semeador e alimento para quem precisa comer, assim acontece com a minha palavra que sai de minha boca: ela não volta para mim sem efeito, sem ter realizado o que eu quero e sem ter cumprido com sucesso a missão para a qual eu a mandei.” (Isaías 55, 10-11)
2.1 – O Reino pode ser visto
Onde está o mundo novo? Por acaso ele pode ser visto? Talvez era isto que pretendia um rabino de uma sinagoga que, ao encontrar-se com um cristão, este lhe disse: “O Messias já chegou e inaugurou o Reino”. O rabino abriu a janela, olhou para fora e disse: “Não, o mundo está em tal situação que o Reino não chegou ainda”. De certa forma o rabino tem razão. É às vezes difícil reconhecer a presença do Reino em tantas situações lamentáveis. Mas isso não significa que o Reino não esteja aqui.
Precisamente o Evangelho nos fala continuamente do Reino. Os textos que o indicam podem ser divididos em dois grupos:
– o primeiro que fala do Reino que virá: “O tempo já se cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa Notícia.” (Marcos 1, 15), “venha o teu reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu.” (Mateus 6, 10); “Vão e anunciem: ‘O Reino do Céu está próximo’.” (Mateus 10, 7). Este grupo reflete o sentido de espera que caracteriza Israel.
– o segundo fala do Reino que está no meio de nós: “Mas se é através do Espírito de Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus chegou para vocês.” (Mateus 12, 28). Este grupo se refere a algo novo, extraordinário: o Reino está no meio de nós e pode ser visto. Esta é a novidade cristã. Jesus veio anunciar o Reino como uma realidade presente e visível. Seu esforço consistia em fazer enxergar, por sua vida, sua ação, seus feitos milagrosos e suas parábolas, a realidade do Reino. “Eu vim a este mundo […] a fim de que os que não vêem vejam” (João 9, 39).
Uma vez Jesus estava em ação, curando enfermos, livrava de espíritos imundos, curava cegos, etc. Neste momento chegaram dois homens enviados por João Batista e lhe perguntaram se era ele quem haveria de inaugurar o Reino. Jesus não deu uma resposta direta mais os convidou a ver: “Voltem, e contem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a Boa Notícia é anunciada aos pobres.” (Lucas 7, 22) Os discípulos de João obtiveram uma resposta muito concreta; Jesus lhes fez ver o Reino.
2.2 – O Reino, projeto concebido por Deus Pai
Nas 11 vezes que Deus é chamado de Pai no Antigo Testamento, se usa o termo Pai de forma metafórica. O Antigo Testamento é, então, muito cauteloso quando se trata de designar a Deus como Pai. Isto vale, sobretudo, para as expressões que indicam uma paternidade física de Deus que são totalmente evitadas, mas também para as que indicam adoção e ainda para as que denotam um uso metafórico da palavra.
Em nítido contraste com o Antigo Testamento, os evangelhos nos oferecem um testemunho surpreendente e inusitado: Jesus se dirige a Deus chamando-o de Pai e nada menos que por 170 vezes. E nunca o invoca com outro nome em seus momentos de oração. Nestes, especialmente, Jesus se dirige a Deus chamando-o de Abba, que quer dizer Papai. Não se trata de uma nova metáfora, mas sim de uma relação real e muito especial. Graças a essa relação, nós sabemos que Deus é Pai e gerou um Filho que o chama de Abba.
Não é a partir da criação do mundo mas da geração do Filho que podemos reconhecer a Deus como um papai e de quem podemos dizer que é também mamãe por seu serviço à vida. Deste Pai somos também nós filhos no sentido que Paulo explica: “E vocês […] receberam um Espírito de filhos adotivos, por meio do qual clamamos: Abba! Pai! ” (Romanos 8, 15) e nos leva a receber a vida que nos quer dar em virtude do grande amor com o qual nos amou (Efésios 2, 4-6). Comunicar plenamente esta vida a toda a humanidade é sua vontade, seu desejo, seu plano, seu projeto. Este projeto de vida, em favor de todas as pessoas, é o Reino.
A palavra expressa de forma sucinta tudo o que Deus tem em mente para a humanidade; o quanto Ele quer realizar com sua potência na história; é a plena expressão do amor de um pai e de uma mãe para o ser humano, seu filho; é a irrupção plena da vida e da bondade com a superação da morte e do mal; é uma ordem nova que a ação amorosa de Deus introduziu no mundo com uma intervenção gratuita e definitiva.
Para compreender algo a mais do projeto do Reino, podemos fazer uma comparação entre a sua elaboração e a elaboração de tantos projetos que, em dimensões pequenas ou gigantes, realizamos em nossa vida de cada dia.
Quando queremos fazer um projeto, começamos pensando, imaginando, criando, talvez solicitados por uma realidade desafiante. Assim chegamos a ter na mente e no coração algo claro, segundo o que nos propusemos. Concebemos o projeto. Mas então se deve passar para a fase de formulação. O projeto requer que seja delineado, esboçado com palavras e imagens claras e precisas para que todos os interessados possam entender e julgá-lo. A expressão é fundamental. No final, o projeto deve ser concretizado para que não fique, como tantos projetos, somente em palavras escritas de um documento.
Em relação ao projeto do Reino, o Pai, a partir de seu amor infinito, concebe um projeto de vida em favor de toda a humanidade: o Reino. Este projeto deve ser expressado, formulado, delineado. Pois bem, este projeto tem sua formulação ou expressão na Palavra, no Verbo, o Filho eterno de Deus. O projeto do Reino encontra no Filho a imagem perfeita, a expressão mais fiel.
O Reino não somente deve ser formulado, mas também exige sua realização. O Filho, sendo a imagem perfeita do projeto, é também seu realizador com a força amorosa e ativa do Espírito Santo. O Filho e o Espírito Santo têm, cada um à sua maneira, a missão de realizar o Reino de Deus. Por isso, Irineu de Lyon dizia que Deus trabalha com duas mãos: o Filho e o Espírito Santo. Com essas duas mãos, o Pai quis realizar o projeto do Reino na história da humanidade.
O projeto do Pai, à semelhança de outros projetos, tem de ser concebido, formulado e realizado. Se nos detemos na terceira etapa, isto é, na realização, podemos descobrir duas grandes etapas:

  1. a primeira compreende a criação da humanidade e a formação de um povo que, como cabeça da ponte, fosse ponto de apoio seguro para acolher o dom do Reino. É importante notar que esta primeira etapa se realiza olhando para o projeto em sua expressão perfeita: o Filho. Este era a imagem segundo a qual se realiza a primeira etapa. A humanidade foi criada e o povo de Deus foi formado à imagem do Filho. Então, as partes do Filho podem ser encontradas em toda a humanidade. Nem sempre a humanidade sabe o que tem; nem sempre é capaz de ver o rosto deste Filho, deste Verbo que toma forma nela, que está aí, em forma germinal, às vezes latente, mas suscetível de ser visto.
  2. a segunda etapa é a realização do Reino a partir de sua inauguração definitiva e que tem lugar com a glorificação (encarnação, vida, morte e ressurreição) de Cristo.

2.3 – O Reino e a ressurreição de Jesus Cristo
O Reino começa efetivamente com a ressurreição de Jesus Cristo. Testemunhas da ressurreição foram muitas: uma delas expôs seu testemunho em forma narrativa e poética fazendo um dos hinos mais belos sobre a experiência de Jesus. É uma composição que reflete o tamanho da convicção dos primeiros cristãos, que estavam dispostos a sofrer o martírio por não renegar esta verdade.
Paulo apóstolo apresenta este hino na carta aos cristãos de Filipos. A obra tem duas partes que indicam as duas fases pelas quais passou o Filho de Deus feito homem.
a)    primeira fase:
“Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz!” (Filipenses 2, 6-8)
b)    segunda fase:
“Por isso, Deus o exaltou grandemente, e lhe deu o Nome que está acima de qualquer outro nome; para que, ao nome de Jesus, se dobre todo joelho no céu, na terra e sob a terra; e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.” (Filipenses 2, 9-11)
A primeira parte do hino se refere à realidade de Jesus antes da Páscoa; a segunda se refere à realidade após a Páscoa. Na primeira parte se fala de aniquilamento; na segunda, de exaltação. A primeira parte concluiu gerando enorme confusão no coração dos discípulos; a segunda os encheu de luz. E pouco a pouco, a partir da ressurreição, os discípulos compreendem que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, o Senhor.
Deus o ressuscitou. A morte foi derrotada. Houve uma transformação radical da realidade terrestre de Jesus. Brota uma nova vida como superação do mal, da crucificação, da morte. O Reino de Deus em plenitude começou efetivamente em Cristo. A ressurreição quer dizer a plena realização de Deus na vida de Jesus Cristo. Deus realizou o seu projeto do Reino no seu enviado Jesus. Ele é o verdadeiro começo do Reino e também o ponto de chegada de toda a humanidade. Toda ela caminha até o Reino inaugurado plenamente em Cristo. Nele houve o que em todos nós haverá de ser uma realidade. Ele é a meta de tudo, alcançada antecipadamente.
A ressurreição tornou real, evidente tudo o que estava escondido: que Cristo atuava no mundo desde o começo (Gênesis 1, 2) para levar o ser humano e toda a criação à plenitude do Reino (Colossenses 1, 16-20). O Reino da vida nova, que é reconciliação, fraternidade, liberdade para a comunhão, se converte na vocação de toda pessoa enquanto pessoa. Sendo já uma realidade em Cristo ressuscitado, vai se tornando também uma realidade em cada época e em cada ser humano e povo da terra, com a orientação inspiradora do Espírito.
3 – Jesus de Nazaré, modelo e paradigma do Reino
3.1 – Jesus, proclamador do Reino
O evangelho de Jesus é o critério seguro para discernir a ação do Espírito que conduz ao Reino. O motivo é que o Evangelho nos apresenta Cristo como proclamador do Reino e como aquele em quem o Reino se realiza plenamente. É necessário então olhar atentamente para Jesus de Nazaré, com os olhos e com a vida, para aprender a ver o Reino, para descobrir a presença do Reino nas ações das pessoas conduzidas pelo Espírito.
Jesus não veio pregar a si mesmo mas sim pregar o Reino de Deus. Quem o escutava ficava assombrado por sua doutrina, porque ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas (Marcos 1, 22). Em Nazaré, onde ele se criou, “todos aprovavam Jesus, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boca.” (Lucas 4, 22). Nem todos se assombravam positivamente. Alguns reagiam de forma negativa: “Por que este homem fala assim? Ele está blasfemando!” (Marcos 2, 7), “impostor” (Mateus 27, 63), “Não temos razão de dizer que és um samaritano e que estás louco?” (João 8, 48).
Era uma missão árdua pois se tratava de apresentar uma realidade muito diferente da desejada pelos judeus que esperavam a monarquia a favor de Israel (Atos 1, 6). Se tratava de inaugurar um Reino Novo, fruto da ação do Espírito e do anúncio do Evangelho. Nesta missão de proclamação, Jesus era incansável: “Devo anunciar a Boa Notícia do Reino de Deus também para as outras cidades, porque para isso é que fui enviado.” (Lucas 4, 43)
3.2 – Jesus, realizador de sinais do Reino
Jesus não anunciava o Reino só com palavras, mas também com as ações concretas. Suas obras e milagres, suas atitudes, seus gestos, colocavam em evidência os diversos aspectos do Reino e indicavam o caminho (João 14, 6) para alcançá-lo. Quando Jesus curou o cego de nascimento (João 9, 1-7), não só fez uma obra boa a esta pessoa, mas também quis revelar, através do milagre, o sentido de sua vinda: “Eu vim a este mundo para um julgamento, a fim de que os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos.” (João 9, 39)
As obras de Jesus iluminam as diversas facetas do Reino, mas há algo a mais. Como bem mostra a encíclica Redemptoris Missio:
“Jesus em pessoa é a Boa Nova, como ele mesmo afirma no começo de sua missão na sinagoga de Nazaré, aplicando a si as palavras de Isaías relativas ao Ungido, enviado pelo Espírito do Senhor (cf. Lucas 4, 14-21). Ao ser ele a Boa Nova, existe em Cristo plena identidade entre mensagem e mensageiro, entre dizer, agir e ser. Sua força, o segredo da eficácia da sua ação consiste na identificação total com a mensagem que anuncia; proclama a Boa Nova não só com o que diz ou faz, mas também com o que é.” (RM, 13).
4 – Características, exigências e dinâmica do Reino
4.1 – Características do Reino
A)    A primeira característica do Reino é a de gerar filhos de Deus (João 1, 12) que têm com o Pai uma relação de filiação, amor e confiança tais que só podem ser expressas com a palavra familiar Papai (Abba). Este aspecto vertical do Reino se traduz logo – em nível horizontal – numa relação especial entre os filhos do Reino que se convertem em verdadeiros irmãos.
B)    É um Reino da vida, porque o enviado do Pai, Jesus, veio “para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna” (João 3, 16). Mas não se trata de uma vida que se adquire depois da morte, no futuro como afirmava Marta seguindo a crença judaica (João 11, 25). É uma vida que se adquire no presente, pois o Reino de Deus já se fez presente em Cristo (Lucas 17, 21).
C)    É um Reino de “justiça, paz e gozo no Espírito” (Romanos 14, 17). Se trata de três termos usados por São Paulo e que aparecem em diversas partes do Evangelho (Mateus 5, 10; 13, 44; João 20, 19-20).
D)    O Reino de Deus é um Reino de serviço. Não se assemelha em nada aos reinos das nações onde os reis devem ser servidos. Jesus declara aos seus discípulos: “Estou no meio de vocês como aquele que serve” (Lucas 22, 27).
E)    O Reino de Deus é um Reino de solidariedade e comunhão especialmente com o pobre. É um Reino onde não se pode acumular para si e trazer prejuízo aos demais. “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus!” (Marcos 10, 25).
F)    O Reino de Deus é, portanto, um Reino de fraternidade. Quando um escriba diz que está de acordo com Jesus sobre o maior mandamento do amor a Deus e ao próximo, Jesus conclui: “Você não está distante do Reino de Deus” (Marcos 12, 34). Disse a encíclica Redemptoris Missio: “O Reino tende a transformar as relações humanas e se realiza progressivamente, à medida que os homens aprendem a amar-se, a perdoar-se, e a servir-se mutuamente. […] Portanto, a natureza do Reino é a comunhão de todos os seres humanos entre si e com Deus” (RM, 15).
4.2 – Exigências do Reino
A)    Uma exigência fundamental do Reino é a conversão. Esta significa nascer de novo porque “quem não nascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus” (João 3, 5).
B)    Jesus se dirigiu aos 72 discípulos e lhes enviou para as cidades: “Curem os enfermos que houver e digam: ‘O Reino de Deus está próximo de vocês’.” (Lucas 10, 9). Esta indicação expressa a exigência do amor para se aproximar do Reino. “Venham vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber […]” (Mateus 25, 34 e seguintes).
C)    O amor do qual se fala é um que se traduz por feitos e não só por palavras. Não basta falar (Mateus, 21, 28-29), nem mesmo é suficiente escutar a palavra de Deus para entrar no Reino. É necessário colocar esta palavra em prática. Quem faz assim é como o homem prudente que edificou sua casa sobre a rocha (Mateus 7, 24).
D)    O Reino exige que essa ação seja feita em si mesmo para remover tudo o que pode ser um obstáculo ao Reino. Este é como uma pérola de grande valor; quando alguém a encontra, vai, vende tudo o que tem e a compra (Mateus 13, 45-46). Esta renúncia não conhece limites, pois o Reino é superior a qualquer outra coisa. “Se o seu olho é ocasião de escândalo para você, arranque-o. É melhor você entrar no Reino de Deus com um olho só, do que ter os dois olhos e ser jogado no inferno” (Marcos 9, 47). O Reino é superior a tudo. Deve-se buscar primeiro o Reino de Deus e sua justiça (Mateus 7, 33) que não é a justiça dos fariseus, insuficiente para entrar no Reino (Mateus 5, 19). A renúncia se estende aos seres queridos quando se deve escolher entre eles e o Reino (Lucas 9, 59-61).
E)    O Reino não é fruto da criação humana, é dom do Pai. Por isso, deve ser recebido como um dom e para isso é necessária a pureza da criança: “Deixem as crianças vir a mim. Não lhes proíbam, porque o Reino de Deus pertence a elas. Eu garanto a vocês: quem não receber como criança o Reino de Deus, nunca entrará nele.” (Marcos 10, 14-15)
4.3 – Dinâmica do Reino
Uma vez que o Reino não se ergue a partir dos critérios deste mundo, ele tem uma dinâmica própria e original.
A)    Em primeiro lugar, o Reino tem o seu próprio tempo e seu próprio ritmo. Tem seu tempo para esperar e seu tempo para atuar, seu tempo para ser paciente e seu tempo para julgar. Por isso, deixa crescer o joio junto com o trigo, para não prejudicar o trigo. Chegará o tempo da colheita e então o joio será separado para ser queimado e o trigo irá para o celeiro (Mateus 13, 24-30).
B)    O Reino tem uma forma especial de conceber a ordem que não deixa de trazer o espanto. Uma nova criação procede com novos critérios que não coincidem com os critérios puramente jurídicos. “‘Amigo, eu não fui injusto com você. Não combinamos uma moeda de prata? Tome o que é seu, e volte para casa. Eu quero dar também a esse, que foi contratado por último, o mesmo que dei a você.” (Mateus 20, 13-16)
C)    Há uma preferência especial para os marginalizados. Por isso, o Reino se assemelha ao homem que promoveu uma grande ceia e fez entrar os pobres e aleijados, mancos e cegos (Lucas 14, 21). Também pregava essa preferência o apóstolo Paulo: “Portanto, irmãos, vocês que receberam o chamado de Deus, vejam bem quem são vocês: entre vocês não há muitos intelectuais, nem muitos poderosos, nem muitos de alta sociedade. Mas, Deus escolheu o que é loucura no mundo, para confundir os sábios; e Deus escolheu o que é fraqueza no mundo, para confundir o que é forte. E aquilo que o mundo despreza, acha vil e diz que não tem valor, isso Deus escolheu para destruir o que o mundo pensa que é importante” (1 Coríntios 1, 26-28). Nesta linha de preferência estão também os pecadores, e assim não é estranho deixar as noventa e nove ovelhas no deserto para buscar aquela que se perdeu até encontrá-la (Lucas 15, 4), nem é estranho matar o novilho cevado porque o filho perdido foi encontrado são (Lucas 15, 30-32).
D)    Esta preferência pelo pobre, pelo fraco e pelo marginalizado não significa que o Reino não seja de todos, mas sim que começa sempre do pequeno, do fraco, e que quer alcançar a todos. É como o grão de mostarda: “Embora seja a menor de todas as sementes, quando cresce, fica maior do que as outras plantas. E se torna uma árvore, de modo que os pássaros do céu vêm e fazem ninhos em seus ramos” (Mateus 13, 31-32). Todos estão convidados para o grande banquete do Reino (Mateus 22, 1) porque é um Reino universal. Está convidado o judeu Nicodemos (João 3, 1-10), a mulher samaritana (João 4, 1-40) e o funcionário do rei (João 4, 46-54). Não há privilégios nem de raça, nem de cultura, nem de proveniência.
4.4 – Polaridades do Reino
A Terra tem dois pólos que chamamos de sul e norte e não poderia se pensar nela sem um dos dois. Igualmente o Reino tem seus pólos, mas, diferentemente da Terra que tem só um par, pode-se considerar que o Reino tem quatro pares. O problema levantado por João Paulo II ao falar do Reino é precisamente que muitas vezes se esquece de algum dos pólos ou mesmo de algum dos membros de um pólo.
Estes quatro pares são estes, segundo a encíclica Redemptoris Missio, com seus respectivos pólos:
A)    O Reino é o plano de Deus:
a.    plenamente realizado em Cristo;
b.    que será realizado plenamente na humanidade e, portanto, a Igreja o anuncia.
B)    O Reino:
a.    já chegou: esse anúncio era novo e especial;
b.    ainda não chegou plenamente: daí que se espera e se clama para que o Reino venha a nós.
C)    O Reino tem dimensão:
a.    transcendente, de modo que é Reino de Deus e vêm de Deus;
b.    histórica, de modo que o Reino é visível, está no meio de nós.
D)    Em relação aos povos:
a.    há um povo escolhido para revelar esse desígnio de amor que é o Reino;
b.    o Reino está destinado a todos, e todos são chamados a ser seus membros. Por isso Jesus se aproximou de maneira especial daqueles que estavam na margem da sociedade, dando a eles a sua preferência.
Se algum desses pares ou pólos for eliminado, se deforma a realidade do Reino e vale novamente a expressão da encíclica mencionada: isso não é o Reino. Seria um reino humano, ou um reino de Deus sem Cristo, ou um reino de Cristo sem Igreja, mas não o Reino de Deus que em Cristo tem a sua realização e na Igreja o seu instrumento, isto é, seu sacramento.
4.5 – O Espírito e o Reino
Todos os povos se encaminham para o Reino movidos pelo Espírito Santo. De fato, o Espírito Santo é a ação de Deus no coração das pessoas. Ele atua fazendo-as atuarem. Não tem uma ação isolada. Sua ação tem lugar na mesma ação das pessoas. O Espírito Santo faz brotar o mais pessoal, original e único de cada pessoa para o serviço do Reino (cf. 1 Coríntios 2, 12-13). A ação do Espírito é o desenvolvimento de toda pessoa até a sua plenitude, na multiplicidade e originalidade de cada ser humano.
O Espírito personaliza, atualiza a potência de cada pessoa, renova a pessoa e converte-a em ação múltipla e original para a vinda plena do Reino em toda a humanidade. Cada ação originada pelo Espírito faz parte de uma grande cadeia de ações cujo conjunto se chama de história dos povos em marcha para o Reino.
Cada vez que o homem busca o bem, a justiça, a liberdade, a solidariedade, a comunhão, o entendimento mútuo, nesse momento se pode ver a ação do Espírito. Ali onde o ser humano constrói a fraternidade e um mundo mais humano e onde se abre para um transcendente que considera ser o sentido último e norma de sua vida, ali o Espírito atua e a sua ação pode ser vista. Vale ressaltar que esta realidade do Espírito que atua não é monopólio de nenhuma religião, povo ou sociedade; o Espírito faz maravilhas em todo tempo e lugar.
Ali onde há pessoas que se comprometem com os valores mais sublimes como a fidelidade, a dedicação, a justiça para todos, a paz e a fraternidade, a vida sem distinções, a verdade, ali está o Espírito atuando nelas e através delas. No tempo certo seus olhos se abrirão e se darão conta de que estavam colaborando na construção do Reino de Deus. De fato, se queremos compreender cada vez mais a ação do Espírito e, sobretudo, se queremos vê-la em nossa história como construção do Reino, então nós temos de deixar-nos guiar pelo Evangelho, critério seguro de discernimento.
A verdade é que em todo tempo e lugar, em todo povo e nação, os valores do Evangelho vão florescendo graças à ação do Espírito Santo. A encíclica Redemptoris Missio pode sintetizar muito bem esta ação universal do Espírito em favor do Reino:
“A presença e a atividade do Espírito não afetam unicamente os indivíduos, mas também a sociedade, a história, os povos, as culturas e as religiões. De fato, o Espírito está na origem dos ideais nobres e das iniciativas de bem da humanidade em caminho; com admirável providência ele guia o curso dos tempos e renova a face da terra. Cristo Ressuscitado trabalha já pela virtude do seu Espírito no coração do homem, não só despertando o amanhã do século futuro, mas também, por isso mesmo, alentando, purificando e assinando embaixo dos propósitos generosos com os quais a família humana tenta alavancar a sua vida e submeter a terra a este fim.” (RM, 28)
Por fim, sobre a necessidade do discernimento evangélico em relação à ação do Espírito, algo que é necessário quando aparecem tantos lobos vestidos em pele de ovelha, a encíclica diz que: “Todo tipo de presença do Espírito tem de ser acolhido com estima e gratidão; mas o discernimento compete à Igreja, a quem Cristo deu o seu Espírito para guiá-la até a verdade completa (cf. João 16, 13).” (RM, 29)
Fonte: “El gusto por la Mision – Manual de Misionologia para Seminarios”, Mons. Luis Augusto Castro Quiroga. CELAM – Conselho Episcopal Latinoamericano, Coleção de textos básicos para seminários latinoamericanos Vol. III, Colômbia, 1994. Páginas 480-500.