Resumo: O presente artigo mostra alguns aspectos do Espírito Santo que podem ser vistos na obra teológica de Leonardo Boff, um dos nomes mais representativos da Teologia da Libertação no Brasil. Nas suas obras é possível verificar uma relação entre o Espírito Santo e o mundo, o ser humano e a Igreja, sem que qualquer ponto da pneumatologia desenvolvida durante os séculos seja diminuído ou menosprezado. Boff consegue evidenciar a atuação do Espírito Santo como Pessoa da comunhão divina que impulsiona a transformação da realidade até o fim dos tempos rumo ao Amor eterno de Deus, mesmo que os homens não se deem conta disso ou até esqueçam da existência do Espírito Santo em suas concepções religiosas e de mundo.
Palavras-chave: Espírito Santo, Teologia da Libertação, Igreja, ser humano, mundo
1. INTRODUÇÃO
Nos Evangelhos são poucas as vezes que Jesus fala sobre o Espírito Santo no sentido moderno de explicar o que ele é; nalgumas, o Espírito aparece como uma promessa a ser cumprida após a ressurreição (como em Jo 14, 16-17.26)[1], ou seja, como Alguém que virá; noutras, como algo que Jesus possui, dado pelo Pai para sua missão histórica, e no qual ele age realizando as promessas messiânicas (em Mt 3,16 e similares). Após os eventos de Pentecostes com os apóstolos (At 2,1-4) e com os gentios (At 10,44-48), a ação dos cristãos é caracterizada como uma ação no Espírito, que os enche para transmitir a mensagem de Jesus aos judeus e aos demais povos.
Ao passo dos anos, entre perseguições e difusão do Evangelho, ao lado da catequese sobre o Pai e sobre o Filho Jesus Cristo amparada nos escritos neotestamentários, aparece a catequese sobre o Espírito Santo descrevendo os entendimentos dos cristãos a respeito da sua procedência, da sua missão e dos seus atributos ou aspectos, à luz dos Evangelhos e com o apoio da experiência cristã acumulada até o momento. Escritores cristãos como Orígenes, Atanásio, Tertuliano, Basílio (em Tratado sobre o Espírito Santo), Agostinho (em Sobre a Trindade), João Crisóstomo, entre muitos outros, se dedicaram a explicar sobre o Espírito Santo dentro das longas disputas sobre a Santíssima Trindade travadas com outras linhas de pensamento tachadas como heréticas em vários concílios até o oitavo século convocados para a resolução de problemas doutrinais.
Um dos conflitos mais longos a respeito do Espírito Santo ocorreu desde os primeiros séculos entre os orientais (ou gregos) e os ocidentais (ou latinos), em relação à procedência do Espírito, se Ele vem do Pai pelo Filho ou se vem do Pai e do Filho; enquanto que os orientais centralizaram no Pai a procedência e radicalizaram essa centralidade, os ocidentais reivindicaram a procedência no Pai e no Filho, uma vez que ambos são pessoas ou relações do mesmo Deus Único, e tendo Tomás de Aquino como grande sistematizador da doutrina sobre o Espírito Santo na obra Tratado contra os erros dos Gregos. Nota-se que ambos os lados da questão possuem sua fundamentação baseada na Bíblia e reforçam suas posições conforme o modo de pensar próprio de suas culturas, o que torna o trabalho de reaproximação ecumênica mais longo e cuidadoso.
O tema do Espírito Santo volta a ter relevo no Magistério em 1897 com a encíclica Divinum Illud Munus de Leão XIII, onde são tratados o mistério da Trindade e o Espírito Santo na vida da Igreja, sua presença em cada batizado e seus dons e frutos recebidos através dos sacramentos. Nas versões do Catecismo da Igreja Católica e nos compêndios ou manuais de teologia dogmática – entre estes a obra Dogmática Católica do cardeal Müller – aparece o Espírito Santo sendo tratado não apenas em relação à Trindade, mas também com relativa especificidade, sublinhando os seus atributos de modo separado dos atributos do Pai e do Filho, obviamente sem trata-lo como um Deus a mais ou como uma criatura subordinada ao Pai e ao Filho.
Também a Teologia da Libertação toca no tema do Espírito Santo, elaborando aos poucos uma “pneumatologia da libertação” através de autores como José Comblin, Gustavo Gutiérrez, Victor Codina e Leonardo Boff. Sem deixar de lado a Tradição cristã patrística e o desenvolvimento teológico sobre o Espírito Santo, esses autores se esforçam para refletir a relação entre o Espírito e o contexto cristão latino-americano e, mais concretamente, a necessidade dos pobres e marginalizados da sociedade e superar as dificuldades mediante uma espiritualidade libertadora adequada ao tempo atual. Em pouquíssimas palavras, esses autores destacam a manifestação do Espírito Santo nas ações de transformação, libertação e geração de vida plena dentro e a partir da comunidade eclesial, fonte e cultivadora da fé, da esperança e do amor-compromisso com a justiça.
2. O ESPÍRITO SANTO E SEUS ATRIBUTOS
A importância da pesquisa a respeito do Espírito Santo tem como um dos seus fundamentos a fala feita pelo Papa Francisco dias antes da festa de Pentecostes em 2014, quando ele relatou que a Terceira Pessoa da Trindade é o grande esquecido e exortou os fiéis a pedirem a Deus que o Espírito Santo seja conservado em cada um (ZENIT, 2018).
Outro fundamento vem do que é proclamado nas fórmulas do credo apostólico (“creio no Espírito Santo”) e do credo niceno-constantinopolitano (“Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: Ele que falou pelos profetas”); cabe ao teólogo perguntar-se: além do que o credo aponta sobre o Espírito Santo, o que mais Ele fez no mundo? Como ou por meio de quem Ele tem se mostrado ou revelado? De que maneira o cosmos, a Igreja e cada ser humano manifestariam a presença d’Ele?
Ressalta-se também que a simples palavra “espírito” possui diferentes maneiras de ser entendida nas diversas culturas (hebraica, grega, latina, afro-brasileira, etc.), conforme as experiências de fundo que as pessoas dessas culturas tiveram ao longo dos anos (BOFF, 2013, p. 75); como o Cristianismo encontra nas culturas o suporte linguístico para se difundir, faz-se necessário substituir as intepretações conflituosas entre o Espírito Santo e “espíritos”, usando os escritos do Novo Testamento como base para entender e afirmar a dimensão dinâmica, impulsionadora, viva e vivificante do Espírito Santo na e pela Igreja desde o evento de Pentecostes.
Assim, nas seguintes páginas serão informados alguns dos atributos do Espírito Santo conforme o pensamento de Leonardo Boff, mostrando como o autor descreve a presença desses atributos no cosmos, no ser humano e na Igreja, com a expectativa de evidenciar aos leitores a atualidade e a necessidade das reflexões sobre o Espírito Santo para o crescimento da Igreja.
2.1 O Espírito Santo no cosmos
Em todos os povos do mundo é possível encontrar uma maneira de se descrever o universo, sua ordem, suas origens e seu destino. Não foi diferente com o povo hebreu, que deixou por escrito suas considerações sobre o surgimento do universo no livro de Gênesis, cujos primeiros versículos descrevem o Espírito pairando sobre a desordem ou caos e sua ação na transformação dessa em um conjunto vivo e organizado. Segundo Boff, a presença do Espírito é fundamental para dar origem ao universo tal qual o podemos experimentar e à vida em todas as suas formas, desde as espécies de vegetais, passando pela criação e posterior destruição dos dinossauros até a formação da raça humana:
O Espírito perpassa sempre a história, mas irrompeu especialmente nos momentos críticos, seja do universo, seja da humanidade, seja na vida individual das pessoas. […] Foi Ele que presidiu o sutilíssimo equilíbrio de todos os fatores, sem os quais não haveria a expansão das energias fundamentais, nem a matéria […], nem o surgimento das grandes estrelas vermelhas. […] O Espírito estava presente no momento em que a matéria alcançou alta complexidade, que permitiu a irrupção da vida […]. Especialmente estava presente quando há 65 milhões de anos, no cretáceo, um imenso meteoro de 9,7km caiu na região do Caribe e produziu um verdadeiro armagedon ecológico […]. Depois dessa dizimação, como que se vingando, ocorreu a maior florada de biodiversidade da história da Terra. […] Foi a partir de então que o Espírito densificou de modo singularíssimo a sua presença ao fazer emergir do mundo animal o ser humano, portador de consciência, de inteligência e de capacidade de amor e de cuidado. (BOFF, 2013, pp.13-15)
Essa consideração sobre a presença do Espírito nos atos de criação deriva-se da concepção trinitária de Boff sobre Deus como uma unidade dinâmica e relacional de Três Pessoas reveladas ao longo da história humana e da Terra e experimentadas nas dimensões de transcendência (Deus como referência última e origem sem ser originado, ou seja, o Pai criador), de imanência (Deus que se encarna na humanidade e se revela como fraternidade universal para divinização do homem, ou seja, o Filho redentor) e de transparência (Deus como força de transfiguração do universo em relações de amor dentro da diversidade, ou seja, o Espírito Santo santificador), que conduz a proclamação de que “no princípio não está a solidão do Uno mas a comunhão das três divinas Pessoas”. (BOFF, 1986, pp.21-39)
A dinâmica de Deus é então uma atuação que se revela aos humanos na contínua criação do universo, ou seja, na “gênese permanente do universo” (BOFF, 2013, pp.181), a qual, graças à presença do Espírito, ocorre em estágios a partir de uma predisposição e orientação iniciais até alcançar as fases contemporâneas de complexidade na vida e na consciência, sempre com interligação e cooperação entre todos os seres, que possuem as características de serem diversificados, subjetivos ou conscientes de si, e inter-relacionados:
Tudo, portanto, está em movimento, relacionando-se e alcançando patamares mais complexos e altos. […] O universo se sustenta pela força do princípio cosmogênico, da cooperação entre todos, e não pela predominância do mais forte. A vida conseguiu penetrar todo o planeta Terra não pela eliminação dos diferentes, mas pela consorciação entre eles, trocando energias e matéria. […] Se o espírito e a consciência estão em nós, é sinal que estavam antes no universo [que é] autoconsciente e está crescendo nesta consciência na medida em que nós vamos crescendo e alargando os horizontes de nossa mente e de nosso coração. (BOFF, 2013, pp. 182-186)
Essa concepção de Deus como Trindade de relação e comunhão está presente na Bíblia, escrito que perpetua a tradição judaico-cristã, que “atribui ao Pai, mas particularmente ao Espírito do Pai, a criação e a ordenação do universo” (BOFF, 2013, p. 187); estando presente do início ao fim (Gn 1,1; 2,7; Ap 22,17), Ele é descrito pelo livro da Sabedoria como Aquele que enche todo o universo e que é um sopro incorruptível presente em todas as coisas (Sb 1,7; 12,1). Mesmo sendo humanamente impossível ter uma representação perfeita do seu ser divino em imagens e palavras e de haver uma comparação coerente com tudo e qualquer coisa existente, Boff aponta que a ação do Espírito Santo extrapola o círculo trinitário e se lança para fora dela:
Ele atuou no big-bang, criando aquele equilíbrio refinadíssimo que permitiu o surgimento da matéria, das grandes estrelas vermelhas, das galáxias e das estrelas de segunda e terceira geração, os planetas, a Terra, os seres que ela contém e nós mesmos. Ele empurrava para frente e para cima o processo evolucionário, a cosmogênese, quer dizer, a gênese do universo que ainda está se realizando e que não acabou de nascer totalmente. Ele está atrás de tudo como o Propulsor e está à frente como o grande Atrator, fazendo com que o universo, apesar dos muitos entre choques de galáxias e exterminações em massa do capital biótico, sempre mantivesse uma seta apontando para formas mais complexas e ordenadas de seres. (BOFF, 2013, p.188)
Conforme a fé cristã professa no símbolo niceno-constantinopolitano que Ele é vida e vivificador ou gerador de vida, o Espírito não poderia estar ausente da vida das bactérias, das plantas, dos animais e dos humanos, estes que receberam o Espírito soprado em suas narinas (Gn 2,7). Com isso, torna-se importante ressaltar como é que tem acontecido a presença do Espírito Santo na humanidade e alguns efeitos de sua atuação.
2.2 O Espírito Santo na humanidade
Estreitamente ligado com o universo está o ser humano, parte dele e momento mais atual da criação de Deus sempre contínua e criativa. Em seus escritos, Boff retrata a relação do Espírito com a criação do cosmos e também se ocupa de mostrar que o Espírito também age no mundo mediante as pessoas, que formam a Igreja (conforme será visto mais adiante) e as instituições políticas de uma nação e do planeta inteiro com suas numerosas inter-relações. Essa ação pode ser vista, semelhantemente aos atos da criação, como algo que mistura construção e desconstrução de sistemas para que haja a caminhada de convergência entre povos e culturas tão distantes e distintas entre si:
Seria insuficiente qualquer análise mais profunda [das atuações do Espírito na história] se não tributássemos ao Espírito Santo a derrocada do vasto Império Soviético, construído sobre um socialismo de Estado ateu e desrespeitador dos direitos individuais. Surpreendentemente […] a União Soviética ruiu, sem passar por processos violentos de rebeliões e de guerras civis. […] Esse evento, com características de mistério transcendente dentro da história, pois não foi previsto por nenhum analista de renome, liquidou com a divisão entre os dois mundos; […] fortaleceu o processo de globalização de viés ocidental e capitalista, com todos os reducionismos que implica. (BOFF, 2013, pp.22-23)
Essa ação do Espírito não significa que Ele tenha tomado partido ou decidido por um ou outro sistema econômico, e sim que Ele – “Espírito de unidade, de reconciliação e de convergência na diversidade” (BOFF, 2013, p.24) – conduz a humanidade a descobrir-se como uma espécie única, que tem um destino comum e cuja história está intimamente unida com a história da Terra. Os diversos movimentos humanos do Fórum Social Mundial, da Primavera Árabe, da crise financeira de 2008 que demonstrou o fiasco dos conglomerados econômicos em suas ações de desestabilização e exploração de outros países, e da crescente consciência ecológica e suas consequentes ações para tomar caminhos de vida sem a degradação da natureza provocada pelo processo industrialista, todos eles são vistos por Boff como atuação do Espírito que desperta a humanidade e a leva a decidir por outros caminhos de vida plena e solidária entre seres humanos e entre estes e a natureza.
De fato, sendo o Espírito Santo “o Sopro (Spiritus em latim) que revela a vida, mantém a vida e reanima toda a vida” (BOFF, 2013, p.244), e tendo Ele sido revelado aos apóstolos e entendido pela tradição teológica da Igreja como a Terceira Pessoa da Trindade que não é separada do Pai e do Filho, não os precede, os excede nem os reduz, uma vez que coexiste eternamente em comunhão e interpenetração recíprocas (cf. BOFF, 1986, pp.170-171), pode-se entender que o Espírito Santo serve tanto de crítica quanto de inspiração à atividade humana tomada individual ou coletivamente.
Enquanto que na cultura propagada atualmente há “no nível da pessoa o predomínio do indivíduo, de seu desempenho isolado, de seus direitos compreendidos sem relação com a sociedade”, a comunhão trinitária revelada por Jesus no Espírito Santo, “aberta para além das próprias Pessoas incluindo a criação”, aparece como um convite para a pessoa humana manter-se constante e ativamente em um conjunto de relações nas quais ela dirige sua atenção “para a sua origem (para trás e para cima) no mistério abissal do Pai, para os seus semelhantes (para os lados) revelando-se nos outros e acolhendo a revelação dos outros no mistério do Filho, para dentro de si mesma em sua interioridade no mistério do Espírito Santo”. (BOFF, 2013, p.232).
As sociedades modernas capitalistas e socialistas apresentaram, na visão de Boff, graves desvios em relação a este ideal de comunhão trinitária; os regimes liberais-capitalistas são formados pelo domínio da classe burguesa e a imposição de seus interesses, apoiados pelo aparato de controle estatal, sobre uma imensa maioria de pessoas, que acabam sendo empobrecidas e marginalizadas pelas elites que transformam tudo em mercado, desde a natureza até a religião, vendo como patologia qualquer indício de caminho diferente ao que é imposto; os regimes socialistas transformam a comunhão e a participação de todos num sistema homogeneizador e massificador, ou seja, feito de pessoas anuladas de suas diferenças por um “partido que se entende como vanguarda da revolução social e como o intérprete do sentido da história” (BOFF, 1986, p.188) e que age de cima para baixo. Em contraste a tudo isso,
a Comunhão trinitária é fonte de inspiração para práticas sociais. Especialmente os cristãos comprometidos com mudanças estruturais da sociedade a partir das grandes maiorias pobres encontram na Tri-unidade a sua utopia eterna. Os três Diferentes afirmam a diferença um do outro; ao afirmar o outro e entregar-se totalmente a ele se constitui como Diferente em comunhão. Na Trindade santa não há a dominação a partir de um pólo, mas a convergência dos Três numa recíproca aceitação e doação. São diferentes, mas ninguém é maior ou menor, antes ou depois do outro. Por isso uma sociedade que se deixa inspirar pela comunhão trinitária não pode tolerar as classes, as dominações a partir de um poder (econômico, sexual ou ideológico) que submete e marginaliza os demais diferentes. (BOFF, 1986, p.189)
Na descrição da relação do Espírito Santo com a humanidade, não se pode deixar de lado a tradição que o judaísmo tem e que serve como base ou raiz para a existência da atual sociedade ocidental. Boff salienta que no Antigo Testamento o Espírito não era concebido pelos judeus como uma Pessoa, mas sim como algo divino que transforma, impulsiona, age e que dá a vida na criação e nos seres humanos, ou como a presença do próprio Deus que conduz a criação pela história afora. É Ele quem se apodera de vários personagens bíblicos libertadores ou triunfantes como José (Gn 41,38), Moisés (Nm 11,17), Sansão (Jz 14,19), ou líderes políticos como Saul (1Sm 10,10) e Davi (1Sm 16,13) que são ungidos como rei e, em tempos de dificuldades, é “investido de poder carismático para dirigir o povo, defender os pobres e garantir a paz na justiça” (BOFF 1986, p.234). O Espírito também é quem suscita os profetas a exemplo de Ezequiel (Ez 3,14) e Miquéias (Mq 3,8), os inspira a denunciar a queda dos líderes na sedução do poder abusivo e a manterem-se firmes mesmo na perseguição e no martírio; um dos profetas, Isaías, diz que o Servo Sofredor (Is 61,1ss), identificado como o Messias e com características distantes das do rei por sua humildade extrema, receberá a plenitude do Espírito para libertar os pobres das opressões e injustiças graças ao seu sofrimento. Por fim, nas profecias de Ezequiel (Ez 36,26-27) e de Joel (Jl 3,1ss), o Espírito virá sobre cada pessoa, renovando-lhe o coração e ajudando-lhe na construção de uma nova humanidade.
2.3 O Espírito Santo na Igreja
A partir do que se lê nos Atos dos Apóstolos, a Igreja pode ser vista como uma espécie de sociedade que herdou várias tradições da sociedade judaica e que foi tomando corpo e se consolidando historicamente a partir do evento da morte e ressurreição de Jesus, ou como a “comunidade de fé, esperança e amor que procura viver o ideal de união proposto pelo próprio Jesus Cristo” (BOFF, 1996, p.82) formada no dia de Pentecostes posterior à Páscoa de Jesus, quando o Espírito Santo irrompeu sobre os primeiros discípulos dele reunidos em Jerusalém e fez com que povos de línguas diferentes ouvissem pela primeira vez o anúncio dos fatos de Jesus Cristo e seu significado, dando início à conversão das nações à fé na Trindade e ao derramamento do Espírito conforme a profecia de Joel indicava aos judeus no Antigo Testamento (cf. At 2, 1-41). É graças a essa presença criativa e renovadora do Espírito Santo que Boff lembra que “a Igreja vive do Espírito, é o sacramento do Espírito” (BOFF, 2013, p.201).
Porém, a ação do Espírito formando a Igreja não é algo pontual ocorrido no evento de Pentecostes, e sim um impulso contínuo desde os eventos da encarnação de Cristo, cujo conhecimento permitiu aos apóstolos entenderem o Espírito criador como aquele que também renova a criação de modo inimaginável: Ele encheu João Batista para preparar a vinda do Messias (Lc 1,15) e encheu sua mãe Isabel ao receber a visita de sua prima Maria (Lc 1, 41), virgem “santa pela santidade do próprio Espírito Santo”, escolhida por Ele “para Ele mesmo brilhar dentro da criação e santificar todas as coisas” (BOFF, 2009, p.79), que já estava grávida pela ação d’Ele (Mt 1,18) como dissera o anjo Gabriel (Lc 1,35) e assim conceber Jesus. Este teve toda a sua vida pública conectada com o Espírito, que o impele nas pregações e ações junto ao seu povo e aos seus discípulos, que paira sobre ele durante o batismo feito por João Batista (Mc 1,9-11), que o ressuscita dentre os mortos (1Tm 3,16) e é por ele enviado em Pentecostes. Assim, Boff salienta que:
A atuação do Espírito Santo é eminentemente criadora, voltada para o futuro. Toda criação implica ruptura, crise do estabelecido e abertura para o ainda não conhecido e ensaiado. O Espírito liberta da obsessão da origem e do desejo de voltar ao útero paradisíaco, cujo acesso está definitivamente fechado (cf. Gn 3,23). Ele nos move para a terra prometida e para o destino que se deve construir e revelar no amanhã. (BOFF, 1986, p.235)
Para que os discípulos sejam os construtores de um novo mundo, o Espírito atua recordando os atos e falas de Jesus durante seu apostolado e sua aplicação nos mais diversos momentos da vida deles: o Espírito Santo ensinará e lembrará tudo aos discípulos (Jo 14,26), manifestando e interpretando o que recebeu do que é do Pai e do Filho (Jo 16,13-15) para que eles deem testemunho de Jesus (Jo 15,26-27). Ao conduzir os fiéis a serem filhos de Deus no Filho (Rm 8,14) e fazer com que os fiéis acolham o Filho na carne (1Jo 4,2), aceitando a forma de humilde servidor e de um profeta e mártir com a qual Jesus se revelou,
O Espírito nos faz viver filialmente no seguimento do Filho encarnado, impedindo o esquecimento da simplicidade, da humildade, da coragem profética, da mentalidade de serviço, da relação íntima com o Pai que o caracterizam. Missão do Espírito consiste em atualizar permanentemente o significado da encarnação como processo mediante o qual Deus-Filho assume a história com suas transformações e a faz história santa, história da Santíssima Trindade. O Espírito conserva a continuidade entre o “aquele tempo” quando irrompeu o Filho na carne e o hoje da história. As potencialidades da filiação divina e da inserção da humanidade no mistério trinitário não foram ainda totalmente explicitadas. Compete ao Espírito desdobrar e realizar nas culturas […] a significação divina e humana deste fato único na história. (BOFF, 1986, p.236)
Tendo recebido o Espírito, a Igreja se constrói pouco a pouco sobre a fé, a celebração da fé e o ordenamento interno visando a coesão dos membros, a caridade e a missão no mundo humano, agindo em favor da libertação do ser humano contra as opressões do pecado, também chamado de instintos egoístas (Gl 5,17) ou carne (Ef 2,3) na Bíblia; diante dos projetos de interesse individual, de exclusão social e cultural e de opressão religiosa, que fazem os pobres e indefesos padecerem, a Igreja é um instrumento do Espírito para libertar e dar força, coragem e criatividade aos sofredores, pois Ele “faz romper os horizontes que encarceram o espírito, rompe os grilhões mediante as práticas libertárias dos oprimidos, mantém viva a esperança e aceso o espírito utópico de um mundo sem dominações e regrado pela justiça e pela fraternidade.” (BOFF, 1986, p.237)
Tudo o que a Igreja-comunidade faz se deve à diversidade de serviços e dons que aparecem nas pessoas que a compõem e que, na comunhão das diferenças suscitadas pelo Espírito, são destinados ao bem da própria comunidade e nunca para a acentuação do individualismo ou da glorificação de uma ou mais pessoas. Em todos os serviços dedicados à organização e fortalecimento da comunidade (catequese, preparação, liturgia, visita aos doentes, etc.) e à materialização da proposta cristã na sociedade civil por meio de instituições como associações e partidos políticos, se verifica a afirmação de Paulo de que “existem dons diferentes, mas o Espírito é o mesmo […]. Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos. Mas é o único e mesmo Espírito quem realiza tudo isso, distribuindo os seus dons a cada um, conforme ele quer” (1Cor 12, 4-7.11) como Sujeito que se entrega e dá a vida. Em outras palavras:
A multiformidade de expressões de vitalidade e de serviços na comunidade não é uma ameaça à unidade, mas uma oportunidade de enriquecimento para todos. A comunhão não recalca nem reduz a uma as várias diferenças, mas as integra na perspectiva do bem comum. Esta unidade é obra do Espírito. O que se opõe ao carisma não é a instituição, mas é o egoísmo, a prepotência de uns sobre os outros, a vontade de poder que usurpa o carisma dos outros. Tais atitudes são atentatórias à construção da comunidade, exatamente, porque implicam a ruptura da comunhão. Com razão advertia Paulo: “Não extingam o Espírito” (1Ts 5,19)! (BOFF, 1986, p.239)
Por fim, é importante sublinhar que, na Igreja, a dimensão feminina do Espírito Santo é resgatada e posta em relevo, não como uma reflexão feminista de superação do machismo, mas como a experiência da Pessoa que renova todas as coisas sem menosprezar um gênero ou outro. No Antigo Testamento o Espírito (ruah em hebraico, substantivo feminino que significa sopro, vento) é ligado a funções ou a imagens femininas – desde o “pairar do Espírito por sobre as águas do caos primitivo da criação antes que houvesse ordem” (BOFF, 1996, p.146) até a imagem da Sabedoria como mulher (Eclo 14,22), esposa e mãe (Eclo 12,26) e também igualada ao Espírito (Sb 9,17) – e no Novo Testamento a terminologia feminina das funções do Espírito Santo recebe acréscimos: Ele é o que exorta, ensina (Jo 14,26) e educa os filhos na oração e na forma de pedir (Rm 8,26), não deixando os filhos órfãos (Jo 14,18) e transmite a eles que Jesus é o Senhor (1Cor 12,2). Além disso,
No corpo de Cristo que é a Igreja, o Espírito qual mãe concebe novos irmãos e irmãs de Jesus e enche de vida com carismas e serviços as comunidades cristãs. […] o Espírito possui dimensões femininas e masculinas, mas está para além dos sexos. Os valores que descobrimos no feminino presente na mulher e no varão encontram no Espírito Santo uma de suas fontes eternas. (BOFF, 1996, p.147)
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa e a escrita relativas aos atributos do Espírito Santo – quer em conjunto com as Pessoas do Pai e do Filho, quer em separado conforme as fontes bíblicas e a tradição teológica desenvolvida na Igreja – se mostram como atividades de grande complexidade sobretudo graças à complexidade própria do Espírito tal qual Ele se nos revela ao longo da história. Se, por um lado, a grande quantidade de escritos e tratados elaborados por autores cristãos ocidentais e orientais desafia o estudante de Teologia e o teólogo a se aprofundar no mistério do Espírito e da Santíssima Trindade, por outro lado os textos de Leonardo Boff são um instrumento importante na contemplação e na reflexão acerca de cada Pessoa da Trindade e, no caso do Espírito, podem ajudar o leitor contemporâneo não apenas a se aproximar da doutrina à maneira científica, formal e distante do objeto de estudo, mas também a equilibrar os enunciados e significados da doutrina com a prática que, iluminada pelo Espírito, dará ao mundo os frutos que Ele mesmo deu aos discípulos desde sua descida em Pentecostes.
Dito de outro modo, os atos de humilde e respeitosa aproximação da pessoa ao mistério do Espírito são infinitamente insuficientes para compreender e contemplar todas as informações e experiências que os cristãos têm recebido ou construído sobre o Espírito Santo ao longo dos séculos, mas essas formulações e considerações formam uma base para que o cristão tenha uma autêntica espiritualidade, ou seja, uma vida coerente segundo o Espírito com algumas das características a seguir: a inter-relação entre os demais seres formando uma complexa rede de vida que se expande sempre (tal qual o cosmos); o esforço constante e solidário pelo direito dos seres humanos à vida plena, especialmente dos pobres, aqueles que têm seus direitos mais elementares negados pelos sistemas políticos favoráveis à acumulação de bens em detrimento das pessoas e do ambiente; a luta por uma vida liberta de todos os sistemas que aprisionam o ser humano em mecanismos como o do consumo e da competição, e lhe negam a possibilidade de viver no amor universal e sem fronteiras com os demais seres humanos, impedindo que cada pessoa seja participante da natureza divina.
Com essas ideias mencionadas no texto acima e outras tantas contidas em seus escritos, Boff ajuda o leitor a penetrar cada vez mais na contemplação do Espírito Santo, fonte dos dons da sabedoria, da inteligência, do conselho, da fortaleza, da ciência, da piedade e do temor de Deus que fazem o ser humano embebido do Espírito uma pessoa transformada e irradiadora de virtudes necessárias para que a vida do mundo seja também transformada à imagem da Trindade ou, como se reza no início do hino “Vinde Espírito Criador” composto por Estêvão Langton, arcebispo de Cantuária no século XIII (BOFF, 2013, p.254), que os corações criados pelo Espírito Criador sejam preenchidos pela graça divina.
REFERÊNCIAS
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_______. A Ave-Maria: o feminino e o Espírito Santo. 9ª edição. Petrópolis: Vozes, 2009.
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_______. A Trindade e a Sociedade. 6ª edição. Petrópolis: Vozes, 2014.
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_______. Life of the spirit and ethics of the Earth and Antoine de Saint-Exupéry. (20 fev. 2016). Disponível em: <https://leonardoboff.wordpress.com/2016/02/20/life-of-the-spirit-and-ethics-of-the-earth-and-antoine-de-saint-exupery/>. Acesso em 21 fev. 2018.
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Acesso em 30 mar 2018.
[1] Para as citações bíblicas, será usada a versão “Bíblia Pastoral” mantida pela editora Paulus no endereço http://www.paulus.com.br/biblia-pastoral/_INDEX.HTM. Acesso em 13 mai 2018.